Fátima Trinchão
Poesias, Contos, Crônicas
Textos

A VELHA CASA

   Tarde de verão de um vinte e quatro de dezembro de um ano qualquer, naquela rua agradável, limpa, arborizada e hoje por ser véspera de um feriado, tranqüila, deparei-me com aquele homem, já velho, cabelos brancos, não lhe restava um só fio dos cabelos negros que outrora lhe enchiam a cabeça, muitas vezes caindo-lhe pela fronte, ao simples roçar da brisa; os ombros,curvaram-se-lhe com o peso dos anos, longos anos, em que viveu grandes alegrias, grandes preocupações e tantos outros desalentos. Estatura alta na juventude, agora parecia haver diminuído ante o derrear dos ombros, que o cansaço do tempo impõe; os músculos flácidos deixavam entrever na camisa de manga longa, que o tempo passa para tudo e para todos, naquele momento, a tristeza sondava-lhe o íntimo e os passos lentos e arrastados, em muito diferiam dos passos ágeis e agitados do jovem que ele foi. Viera de muito longe, trouxeram-lhe num carro de praça, um táxi que, ao aproximar-se da entrada da Alameda, ele pedira para saltar um pouco antes, próximo a uma banca de revistas, para que ele pudesse refazer aquele percurso que desde a sua infância, fora acostumado a fazer, só que agora, deveria ser a última vez. Parou à entrada da rua. Queria saborear aquelas pedras, paralelepípedos que ali foram colocados desde a sua mais tenra infância, lembrava-se da alegria dos mais velhos, “o progresso também está chegando aqui”, dizia o seu avô, “Deus é grande”, repetia constantemente a sua avó e ele, entretinha-se com o movimento ruidoso de gente e máquinas, que trabalhavam em ritmo intenso para terminar logo e não incomodar tanto os moradores da tranqüila Alameda; sorriu, deu de ombros, continuou o seu caminhar lento, vagaroso, arrastado, ritmado como suas lembranças; mais adiante, a Igreja de Santo Antonio, era o Santo da devoção de sua mãe, Dona Santinha, aos domingos, ela não perdia a missa das seis e meia da manhã, igreja lotada, se houvesse um atraso, por menor que fosse não encontravam mais lugares para sentarem-se, o jeito, era assistir a missa toda, de pé, e olhe que o Padre, no sermão, alongava-se de tal e tal maneira que era impossível não procurar um degrauzinho para descansar as pernas. Continuou o seu caminhar, a casa ficava logo ali, mais adiante, marcara com o corretor às quinze horas e trinta minutos; não gostava de atrasar-se, nunca fora do seu feitio; muitas vezes, saíra sem alimentar-se o suficiente, mas, sempre colocara em primeiro lugar, o compromisso assumido, e atrasar-se, para um compromisso marcado com antecedência, não era digno. Tentou caminhar mais depressa, o corpo já não lhe obedecia às vontades, mas, ainda assim, buscava não pensar mais e concentrar-se no que veio fazer. Tarefa dolorida, mas, mais dolorida estava a sua alma, porém, o que tinha que ser feito, tinha que ser feito. Não havia outro jeito, não existiam soluções outras que não aquela que se lhe afigurava. A leve brisa do entardecer continuava a passear pela Alameda e ali, quase ninguém passava a não ser um ou outro apressado, que queria cortar caminho, em busca do próximo ônibus.
           As imagens de outrora teimavam em descortinarem-se em sua mente, opondo-se à sua vontade em não mais relembrá-las; onde estariam os amigos que a infância risonha e tranqüila lhe dera ? Bernardo, Henrique, Celso, Gustavo....nunca mais os vira, e como foram companheiros de infância e juventude; uma juventude cheia de novidades, o curso clássico, o colégio, as namoradas, o vestibular, a faculdade, as noites empregadas no estudo, os livros, os amigos, a formatura, a alegria dos pais e parentes, o orgulho da mãe, em especial, a missa de Ação de Graças para Santo Antônio, a roupa branca, alva, sem uma só nódoa, que Dona Santinha fazia questão de lavar,passar e engomar, e aquela brisa que vinha,e vinha cada vez mais freqüente, intensa, desmanchando-lhe os fios tão bem arrumados e tão brancos. Suspirou, “não senhor, não senhor, seu moço, não há como teres tamanhas lembranças, coisas que não mais se encaixam, passou, acabou, pronto; o porvir está à sua frente; olhe para a frente”. Tentava consolar a si próprio, mas, que futuro lhe aguardava? Todo o seu futuro jazia inerte no pretérito, embalsamado que fora pelas lembranças que o atormentavam. Afinal, chegou ao portão da casa, ainda do lado de fora parou, contemplou-a de alto a baixo, afastou dos olhos, os fios de cabelo que teimavam em cair, obnublando-lhe ainda mais a vista; já não enxergava tanto, necessitava dos óculos constantemente e precisava ver de perto, a casa de sua infância e juventude. Era uma casa simpática, chamava a atenção de quem por ali passasse, nem modesta nem imponente, uma casa confortável para a exigência da época; dois andares e um terraço a compunham, logo à frente pequeno portão e adiante era rodeada por um jardim onde eram plantadas rosas, rosas-meninas, angélicas, narcisos, samambaias, e no meio do jardim uma pequena fonte com a estátua de um jovem carregando um vaso, que se derramava, propiciando beleza e harmonia ao conjunto, atravessando o jardim, subia-se quatro degraus e atingia-se a porta da entrada principal. Lembrou-se da Tia Margarida e do Tio Jonas, ambos seus padrinhos; lembrou-se do velho cão, Robalo, seu companheiro de todas as horas e de todas as brincadeiras. Chegou. Antes de tocar a campanhia, imaginou que, quando o fizesse, viria atendê-lo sua mãe, Dona Santinha, seu pai, seus tios e padrinhos lá estariam para recebê-lo, Robalo latiria e abanaria a cauda, buscando lamber-lhe o rosto, e todos sorridentes, dar-lhe-iam as boas-vindas....finalmente tocou a campanhia, estava com algumas chaves à mão, cópias, mas, mesmo assim, preferiu tocar a campanhia, tocou uma vez, esperou; ninguém atendeu; tocou a segunda vez, esperou mais um pouco, nada; tocou ainda a terceira vez, impacientou-se, crispou o cenho, esfregou as mãos, queria que aquilo ali terminasse logo, o mais rápido possível, e aquela demora, o estava irritando; buzinou, com mais vigor, mais demoradamente pela quarta vez e de lá de dentro ouviu um voz masculina que gritou: “Peraí, peraí, peraí rapaz , já vou, já vou...peraí....” . E ele esperou, poucos minutos depois assomou à porta um senhor de meia-idade, ajeitando-se, esbaforido puxava o feche éclair da calça que teimava em não querer fechar ao mesmo tempo em que abria a porta puxava o feche éclair, estendeu uma das mãos ao senhor Pedro, que a apertou respondendo aos cumprimentos. Desculpou-se o profissional, teve que ir ao banheiro e justo nesse momento que o senhor Pedro chegara, mas, “não foi nada, não tem importância, essas coisas fazem parte do nosso dia-a-dia”, disse-lhe este.
                  Ainda assim, o jovem continuava a falar-lhe, mostrava-se entusiasmado com a possibilidade de negociar um imóvel tão bem conservado e tão bem localizado, já tinha até propostas de firmas nacionais e estrangeiras interessadas em fechar negócios, dólares, euros e até trocas por imóveis estavam na lista de espera, desde quando o senhor Pedro lhe conversara que ele foi fazendo as pesquisas, foi conversando com um e com outro, procurou antigos clientes, esteve pessoalmente com eles ou através de telefone; os estrangeiros a internet já resolvia as coisas, pois, podia-se enviar as fotos, através de e-mails e recursos tantos que a tecnologia avançada permite; na verdade, aquele imóvel já estava quase vendido. Senhor Pedro assentia com a cabeça, mas, seu pensamento estava distante, se pudesse medir tal distância em quilômetros, diríamos que o seu pensamento estava a milhões de quilômetros de distância. E enquanto o profissional falava-lhe das vantagens da venda, ele começou a andar lentamente pela casa, há anos passados àquela hora, era um tal de entrar e sair da cozinha para a sala e vice-versa, pratos, receitas, casa impecável, janelas abertas para entrar o ar do Natal, árvore armada e repleta de luzes, pequeninas luzes azuis que pareciam estrelas piscando no seu universo particular. Parara ali, onde estava ficava a sala de visitas, logo após, a sala de jantar ladeada por quatro janelas duas de cada lado, ao centro, uma mesa ampla, confortável, com cadeiras reservadas para as cinco pessoas da família, duas de cada lado, e uma cadeira ao centro, mais adiante a copa, ampla, arejada, ao lado a cozinha espaçosa, onde muitas vezes entrara para pedir a Dona Santinha um pedacinho do bolinho de carne, que tanto gostava, antes mesmo de serem levados à mesa, sendo servidos para toda a família; o fogão aceso,o calor do forno, o cheiro de bolos e salgados, e chás, e cafés, e frutas, tudo muito gostoso e bem-cuidado, fechou os olhos, parecia-lhe que tudo que foi passado, ali retornava aos borbotões; seus irmãos, agora todos já falecidos, mas, parecia-lhe que estavam ali, chamando-o para brincadeiras ou estudos:”Pedro, vamos jogar bola”, dizia-lhe Luís; “Pedro, repasse comigo essa aula de biologia, o assunto é difícil!”; solicitava-lhe Marina; “Pedro, vamos até a Ribeira, ver uma regata no domingo ?” convidava-lhe Augusto e sentia Pedro já, a presença do seu pai, dos seus tios e padrinhos, dos amigos de infância e juventude, cada data cívica ou religiosa era lembrada e comemorada; os vizinhos, tornavam-se com o tempo, verdadeiros parentes e nas calçadas, largas, como as da Alameda, à noitinha, podia-se colocar as cadeiras de espaldares altos, a fim de entreterem-se com as conversas de casos e fatos ocorridos naqueles dias na pacata cidade de poucos carros e habitantes, onde quase tudo se sabia.
- E aí Senhor Pedro, ‘tá entusiasmado com as perspectivas ? Senhor Pedro ......
- ............................
Pedro abriu os olhos assustado, e respondeu:
- É isso é bom, tomara que venda logo......
- Vai vender sim, porque o mercado está difícil para um imóvel como esse....o senhor sabe....a cidade se expande a cada dia que passa, muita gente, não tem mais lugar tão bom assim como esse dando sopa não.....e quando aparece é mesmo que mosca no mel....
- É rapaz, isso aqui era uma tranqüilidade, a gente brincava aqui na porta; ninguém incomodava; como as coisas mudaram....
- É tudo muda, hoje virou comércio né ? Que coisa....mas, tá tudo assim.....
            Pedro lembrava-se que naquele dia, vinte e quatro de dezembro, véspera do Natal, Dona Santinha madrugava para aprontar a Ceia da família, um pouco mais tarde, chamava Marina para ajudá-la e ao fim da tarde, já com tudo pronto, preparavam-se todos para comparecerem, a família toda, à Missa do Galo, a meia-noite, uma celebração que era esperada com ansiedade, pois, tratava-se de comemorar o nascimento de Jesus; todos compenetrados seguiam para a Igreja e juntos, adoravam o presépio exposto na lateral da Igreja, visitado por quase todos os moradores da região e de outros bairros, para, logo apos a missa, celebrarem com a Ceia do Natal, o advento do Salvador, todos juntos à mesa, agradecendo e deliciando-se com as receitas deliciosas preparadas por Dona Santinha, antes, porém, Marina exibia os seus dotes de pianista e no piano ao canto da sala de visitas tocava brilhantemente uma das peças dos clássicos para festejar o Natal e também brindar a família com o resultado das aulas de piano que eram tão bem ministradas pela professora Olga, Hendel, Liszt, Bach e que ambiente mágico se tornava a sua casa, à noite. Como gostava de ouvir Marina tocar ao piano os clássicos de Natal, deliciava-se ao ouvi-la e percebia o orgulho e amor dos seus pais por todos eles, os filhos. O perfume das flores, mais em particular das angélicas e rosas que tornavam ainda mais agradável ambiente, dando-lhe um toque especial. Pedro subiu as escadas que davam para o andar superior onde ficavam os quartos; o quarto de seus pais, o seu quarto e de seu irmão Augusto e Luís, o quarto de Mariana, o quarto de hóspedes, o sanitário que servia para todos da família; entrou em cada um deles, e em cada um deles deixou-se ficar, olhos fechados relembrando lentamente cada segundo de sua história; aguçou os ouvidos, quem sabe, Dona Santinha não apareceria ali, chamando-o para a janta, ou Marina, ou Augusto ou Luis, ou seu pai, o Senhor João; alertou o sentido do olfato, o perfume das flores que emanava das roseiras de sua mãe, plantadas no jardim em frente a casa, era inconfundível; o ambiente todo vazio, na realidade, parecia-lhe agora, inundado de vida, nada pereceu, tudo permanece. Relembrou os primeiros passos de valsa, dançados ao som da velha e querida vitrola, era uma valsa de Strauss, sua mãe, incentivava-lhe e foi o seu primeiro par. Entrou no quarto que pertencera aos seus pais, postou-se no meio do quarto, convidou a dama imaginária para a dança, tomaram o centro do salão, e começaram a bailar, olhos fechados, a mão ensaiava um gesto de acolhida da dama, e os passos fluíam no salão, e girava e girava e girava.....
- Senhor Pedro, tudo bem ?
- Ah, sim Roberto, tudo bem.....
- O senhor estava ocupado......
- Não, não......eu estava relembrando uns passos de dança...
- Ah sim.......vamos descer ou o senhor quer ficar mais ?
- Vamos descer, quero acabar logo com isso; o táxi me espera e a bandeira está contando....
- Ah, sim claro...vamos....
- O senhor primeiro, senhor Roberto.
                   Roberto tomou a dianteira, caminhou à frente de Pedro, desceram as escadas, Pedro aproveitou e enxugou as lágrimas que teimavam escorrer-lhe pela fácies. Agora Pedro tinha pressa. Tudo acertado, assinou os papéis que autorizavam a venda, era herdeiro único, não tinha mais como permanecer em um casarão daqueles sozinho; hoje tinha muitas limitações logo, fora a decisão mais acertada. Entregou a cópia das chaves que tinha em mãos, saiu o mais apressadamente que podia, deixou a cargo do profissional todos os trâmites do processo; se precisassem dele, saberia onde encontrá-lo. Roberto disse-lhe que permaneceria mais algum tempo na casa, pois dali faria contato com alguns interessados compradores, pois, se quisessem ir ver o imóvel, este já estaria pronto para visitas; Pedro apertou-lhe a mão, despedindo-se, caminhou, pesadamente até o pequeno portão, fechou-o, não olhou para trás; dizia de si para si: “decisão a ser tomada tem que ser tomada, não há o quê protelar-se”, retornou pela mesma calçada e passou de novo pela porta da Igreja de Santo Antonio, teve vontade de entrar para benzer-se como fazia sempre em criança, jovem e mesmo adulto, mas, a Igreja encontrava-se fechada, mesmo assim, à porta, cumpriu o ritual e agradeceu a Deus pela jornada nesta vida, a leve brisa da tarde, teimava em desmanchar-lhe o cabelo tão bem penteado, com as mãos, tirava dos olhos, os fios que insistiam em atrapalhar-lhe a visão. Virou a esquina, ali, bem ao lado da barraca, o táxi o aguardava, com a bandeira dois ligada. Feliz em vê-lo, pois que, estava ficando apreensivo, o motorista lhe disse:
- Ih...pensei que o senhor não fosse mais voltar...tava demorando.........
- É, eu tive que resolver umas coisinhas.....
- Quer ir a mais algum lugar?
- Não. Vá em frente, preciso voltar ao Asilo, daqui a pouco anoitece e eu não costumo ficar à noite pela rua.... o Asilo tem horário de entrada e eu não gosto de transgredir....
- O senhor tem razão, nesses tempos bicudos, quem puder ficar em casa que fique, então pé na tábua.....
                       Ao saírem da esquina passaram pela entrada da Alameda, Pedro fez questão de virar-se para o outro lado; não quis olhar, os olhos, marejados de lágrimas que teimavam em aparecer, insistiam em aparecer, mas que agora, sentado ali atrás, no canto do sofá do táxi, ele permitiu que caíssem, deixou que escorressem à vontade, depois de alguns quarteirões, olhou para trás, já estava distante, muito distante de sua Alameda, de sua infância, de sua juventude, de sua vida. Ao chegar ao Asilo, tomou um bom banho, trocou-se, preparou-se para o jantar, as comemorações já haviam acontecido dias antes,após, conversou um pouco com os amigos de dominó e baralho, retirou-se mais cedo da sala de tv, queria dormir, ou melhor, precisava ficar só, o dia lhe fora atribulado. Entrou no seu quarto, acendeu a luz, levantou o cobertor, trouxe-o até o meio da cama, apagou a luz, rezou a oração da noite, deitou-se. Deitado não deixava de pensar no casarão de sua família, no quanto de vida e alegria que teve e hoje tão vazio de vida e cheio de lembranças, lágrimas voltaram a escorrer e agora, mais sozinho do que nunca, não teve pejo em deixá-las rolarem ali no seu quarto, na escuridão da noite. 
                       Depois de algum tempo adormeceu, sonhou, sonhou com Dona Santinha e senhor João, Marina, Luiz e Augusto, estavam todos reunidos, era noite de Natal, Robalo não cansava de correr para lá e para cá, a Ceia, festejando o sagrado nascimento, estava posta, fumegante, cheirosa, convidativa e todos, quase todos, só faltava ele, ao redor da mesa rezavam, agradecendo o fato de estarem juntos, assim foi aquela sua noite de Natal. Pela manhã no Asilo, sentiram a sua ausência, ele não costumava acordar tão tarde, ao contrário, era um dos primeiros a levantar-se, foram até o seu quarto, ele estava lá, deitado, sereno, inerte. Ao estar com os seus naquela noite santa, preferiu ficar entre eles, não quis mais retornar, quis gozar da companhia daqueles que, de há muito não via e tanto amava. E ali, no seu sonho, a única cadeira vazia em volta da mesa era a sua, e ao chegar, foi recebido com tanta e intensa alegria, que ele não conseguia reter tamanha emoção, sua mãe apontou-lhe a cadeira vazia, ele sentou-se e a família estava completa novamente. Um riso largo ornou-lhe a face. Era verdadeiramente uma noite de natal.



Salvador, 27/12/2008

Fátima Trinchão
Enviado por Fátima Trinchão em 31/12/2008
Alterado em 04/08/2023
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