Fátima Trinchão
Poesias, Contos, Crônicas
Textos

RODA VIVA


         Estava Felipe a esperar a condução que o levaria a um bairro distante da cidade. Ao seu lado, um senhor abria o jornal com manchetes fresquinhas, pois estavam às seis horas e trinta minutos de uma manhã bastante convidativa para uma praia. Felipe esforçou para ler para ler as manchetes do jornal, e deparou-se com uma manchete que dizia: Menor abandonado. Um problema insolúvel? E a seguir vinham as estatísticas nos estados brasileiros, as possíveis soluções e o apelo aos poderes públicos para que procurassem e encontrassem soluções para o problema. Afinal chegou a condução que levaria Felipe ao seu destino. A manchete despertou-lhe para o problema. Começou a reparar se era verdade o número de menores abandonados ou se era sensacionalismo do jornal. Verificou com tristeza que era verdade. Nas ruas tradicionais cheias de casos e coisas,pelas calçadas cheias de pés apressados, embaixo das marquises da turística cidade dormiam crianças sem roupa, sem comida e sem amor. Felipe pensou consigo meros tão altos, para fatos tão negativos sempre nos assustam. Felipe começou a atentar para aqueles menores, pelos quais os jornais exigiam soluções e providências imediatas. E sempre que se dirigia ao lugar de costume, via deitados nas calçadas, embaixo das marquises, cobertos de trapos e deitados sobre papelões, que um dia foram caixa, os menores, dos quais os jornais falara.
Felipe observou com mais atenção uma dessas crianças. Um menino. Se chovesse ou não, lá estava ele. Naquela mesma calçada, embaixo daquela marquise. Dormia tranqüilamente, não via as pessoas passarem por ele apressadas e que muitas vezes tropeçavam nos seus pés, braços... E ele nem sentia, devia estar sonhando. Mas... com o quê sonhava ? Seu rosto expressava uma inocência que somente encontramos nas crianças, e seus olhos, apesar de tudo deveriam ser também inocentes. Assim pensava Felipe.
Diariamente Felipe o via. A sua curiosidade crescia em relação àquela criança. Perguntava a si mesmo: como será o seu nome? Onde estarão os seus pais? onde mora ? Por que dorme nas calçadas?
Felipe mudou o seu horário de trabalho, e ao invés de esperar a condução às seis horas e trinta minutos, passou a esperá-la às doze horas e trinta minutos. Enfrentando um sol de verão, uma fila quilométrica, e a condução que por demais tardava, Felipe procurou o menor que lhe chamara a atenção, não o viu nesse dia, mas, no dia seguinte, Felipe o viu acompanhado de outros menores de sua idade. Felipe gostaria de falar-lhe, perguntar por seus pais, onde morava, qual o seu nome, mas...não tinha oportunidade. Mas, ela surgiria. No dia seguinte ao iniciar a sua caminhada em direção ao terminal do ônibus, Felipe vira, do outro lado da rua, o menor que ele observava. E aproximou-se:
- Olá, tudo bem? Perguntou Felipe.
- Tudo legal. Respondeu o menor.
- Qual o seu nome?
- Raimundo...
- O meu é Felipe. Onde você mora Raimundo?
- Eu moro na favela, do outro lado da cidade...
- Diga-me Raimundo, qual a sua idade?
-.... qual é rapaz..tu tá me investigando é ...?
- Não Raimundo, eu quero ser ser amigo, e quando a gente quer ser amigos, a gente não deve ter segredos...
-...eu hein...se você não me conhece como quer ser meu amigo ?
- Vamos nos conhecer a partir de agora...
- Raimundo, você vai para casa todos os dias ?
Felipe queria ver a reação de Raimundo a essa pergunta, muito embora soubesse antecipadamente a resposta.
- Não senhor, por quê?
- Porque tem dias que eu não tenho o que levar para casa, e também é longe daqui. Como eu não tenho dinheiro para tomar ônibus, vou ficando por aqui mesmo.
- E quando chove Raimundo?
- É sempre a “merma” coisa moço...
- Ora Raimundo, você sabe o meu nome... Não me chame de moço. Você vai subir?
- Vou sim senhor...
E ambos subiram em direção ao terminal, Felipe tentando tirar o mais que pudesse de Raimundo, este por sua vez, desconfiando de Felipe. Afinal Felipe chegou ao terminal e lá parou esperando a sua condução, enquanto que Raimundo seguiu seu rumo batendo perna pela rua. No dia que se seguiu ao encontro Felipe viu Raimundo no mesmo lugar de sempre, seguiu o seu caminho, mas, Raimundo foi ao seu encontro e disse:
- Olá, tudo bem?
- Tubo bem e você? Perguntou Felipe.
- Vou levando...
- Vai almoçar?
- Ah! Seo Felipe, eu não almoço não senhor. Tem dias que eu ‘tou com um dinheirinho, ai compro alguma coisa, mas... Tem dias que não tem nada...
- Então vamos almoçar?
- Puxa moço, você é bacana!
Foram até um restaurante próximo ao terminal e lá almoçaram. O menino devorava a sua comida com avidez, e sem fazer os intervalos que as pessoas normalmente fazem, quando não têm muita fome. Felipe o observava e dizia de si para sai: iguais muitos neste país. Terminaram e Raimundo muito agradeceu a Felipe e disse:
- “Olhe seo Felipe, nunca almocei tão bem como hoje, ‘brigado” viu ....
Felipe seguiu o seu caminho e direção ao ponto de ônibus, a pensar no que poderia fazer por Raimundo. Felipe o vira no dia seguinte ao almoço discutindo com outros menores que falavam algo entre si. E havia momentos em que suas vozes se alteravam. Partilhavam algo e essa partilha era tida como injusta. Depois que tudo fora resolvido, eles se separaram e Raimundo foi até uma bomboniére e comprou balas e caramelos. Os jornais continuavam publicando suas manchetes, apresentando as suas soluções, fazendo suas críticas, apresentando estatísticas e enviando suas soluções que nunca eram postas em prática. Felipe comentava no seu trabalho, no seu grupo de amigos, na sua casa, o problema do menor abandonado e todos diziam: “deixe esse problema para aqueles que com ele se comprometeram, cuide de você e de seu trabalho porque a vida é curta”. E Felipe pensava: “Porque se preocupava tanto com problemas levantados por manchetes jornalísticas, tantas vezes em busca de sensacionalismo”? Solidariedade humana? Quem sabe...
Esses dias se passaram e Felipe não mais avistou Raimundo, mas, acompanhou as reportagens, os comentários, as críticas e as possíveis soluções em relação ao menor abandonado. Acompanhava com afinco as entrevistas com os educadores, psicólogos, os pais, a opinião pública, os jornalistas que cobriam o assunto, os pesquisadores, os estatísticos... Comparava os números com os de outros países, interessava-se pelo problema que a ele chegou, através de uma manchete de jornal. As opiniões eram diversas, por vezes, se confundiam e por vezes se faziam paradoxais. Felipe sabia que igual àquele menor existiam muitos. As estatísticas o confirmam.

Fátima Trinchão
Enviado por Fátima Trinchão em 07/12/2008
Alterado em 04/08/2023
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