ARLINDA
Da casa do alto do morro, divisava o mundo do asfalto. É bem verdade que para chegar aqui embaixo e retornar todos os dias, era uma dificuldade muito grande, pois aquela escada, com aqueles cento e cinqüenta degraus, todos os dias era muito puxada, quando mais jovem, não tinha esse problema não, subia e descia quantas vezes fossem necessárias, levava e trazia trouxas e mais trouxas de roupas, de longe, que lavava, quarava e botava pra secar, ali, quando tinha muito mato verde, mas agora, já com idade, humm... É ruim viu... 'Inda mais quando chove e quando a chuva é muito forte parece uma cachoeira descendo as escadas, dá para derrubar um mais afoito que tente enfrentar a fúria das águas descendo aquelas escadas; o mais recomendável é que se espere passar, para depois subir ou descer, mas, fora isso, e mais algumas dificuldades ‘tá tudo bem, dá pra sobreviver, se bem que a chuva é muito boa, a água dá vida, dá alegria, é renovação, pra gente seo moço, quando chovia, era um tal de pegar panelas para aparar água que só Deus. Quando começava a chover já sabia, corre, corre pra botar água pra aparar, então a chuva vinha e trazia toda aquela água pra gente beber, por que senão, a gente ia ter que pegar água lá embaixo, ali onde passa a estrada hoje, havia um riacho de águas bem fresquinhas, uma delícia seo moço, dava pra tomar um banho bem gostoso, água friinha, chegava a doer na pele, depois a gente acostumava e não queria mais sair; já meninota, vinha com mainha lavar roupa nesse riacho, depois, tudo mudou, tudo muda não é verdade ? Depois tudo mudou e ai nós passamos a receber água encanada, demora um pouco pra chegar lá em cima, mas, chega. É melhor do que ter que subir e descer essas escadas toda hora, se tivesse riacho... hoje já não tenho nem uma coisa nem outra, nem riacho nem juventude pra isso. Na verdade, aquela comunidade sempre fora especial, todos amigos, desde criança, quando começou a entender-se que viu e sentiu como aquela vizinhança era especial. Aos domingos, a feijoada de seo Henrique, seu pai, fazia sucesso entre os amigos; seo Henrique era estivador no porto, nas docas e sempre estava de bem com a vida, Arlinda, sua única filha, era o seu maior presente e a ela, ele nada negava, fazia-lhe todos os mimos e como pobres, viviam, dividindo com os vizinhos, a alegria da feijoada do seo Henrique e a alegria do dia de domingo, após a partilha da suculenta feijoada, quase todos se preparavam para assistir ao futebol, diversão essa oferecida e garantida pela generosidade do seo Henrique que gostava muito de ver a casa cheia. Arlinda relembrava tudo isso enquanto subia lentamente as escadas que davam acesso à sua casa, lá no alto do morro. Arlinda penava e relembrava os momentos em que vivera com seus pais ali, e após a morte deles, ela permanecera na casa, um dos poucos bens que o seu pai pode lhe deixar, mas, que até hoje, ela agradecia. A artrose já lhe dificultava os movimentos e as varizes, complicavam ainda mais. Acima do seu peso ideal, era-lhe sofrível as subidas e descidas porém, a vida tinha que seguir em frente até quando desse e a velha fadiga não tinha espaço para importuná-la, mesmo porque tudo tinha suas compensações. Muitas foram as lutas, não poucas as batalhas, mas, era uma filha de Iansã, guerreira, altiva e por tão pouco não se deixava abater. Já de há muito que era acostumada a guerrear, guerrear na vida e pela vida, "gente como a gente seo moço, não pode se deixar abater não, senão não vive". E assim, desse jeito, Arlinda ia fazendo o seu caminho, desde moça fora assim, a garra com que vivera demonstrava a tantos quantos estivessem ao seu redor, a sua força e energia, força e energia que não eram à toa, já que nascera uma guerreira, uma filha de Iansã. Epa hei,minha mãe! Ainda um dia desses, eu já nessa idade seo moço, dei de cara com um malandro, desses que não têm o que fazer e quando fazem é querer tirar o que é dos outros. Saí da igreja, após a missa das sete horas da manhã, é porque missa tem que ser bem cedinho, aprendi assim com os meus pais, missa a gente vai de manhã cedinho, reza, se ajoelha, comunga e retorna para os afazeres do dia, mas, quanto mais cedo melhor, é pena que a primeira missa do domingo aqui igreja da comunidade, é às sete as manhã, no meu tempo de menina, as primeiras missas começavam às cinco e trinta, e depois às seis e trinta e depois às sete e as últimas às oito da manhã, mas, tudo muda, os tempos são outros. Mas, moço, como eu ‘tava lhe dizendo, quando eu voltava da igreja, depois da missa, eu ia ali, pelo mesmo passeio da igreja e vinha de lá um rapaz, um rapazola, e assim como quem não quer nada, fez que ia passar por mim e de repente, avançou a mão na minha corrente de ouro, essa corrente moço, eu comprei quando eu comecei a trabalhar, coisa boa, que hoje é difícil, não se vende mais assim não, avançou a mão na minha corrente pra esticar e levar, ah!...mas quem foi que disse que eu ia deixar ele levar ? Quem foi que disse.....ah! comigo mesma, ele esticava de lá e eu de cá, ele puxava de lá e eu de cá, ele me empurrou na parede e eu ‘garrei na mão dele, até qu' eu ‘tava com a sombrinha na outra mão, e dei-lhe com a sombrinha na cabeça e comecei a gritar: "sai daí moleque, vá trabalhar pra ter o que é seu..." e naquele vai-e-vem, naquele estica e puxa, ele se cansou de puxar e desistiu, mas eu não, eu não me cansei de lutar não, oxente, faz-se de besta, tanto é que, quando eu vou à missa, não esqueço nunca de levar meu guarda-chuva, pode estar fazendo o sol que fizer, quente, com o sol à pino, mas, eu não saio sem levar meu guarda-chuva. É cada uma, que parece duas! Ah! Só me lembro daquele dia, em que papai contou, que saía das docas bem tarde da noite, papai era um negão alto, de mais de dois metros, largo, enorme, só de olhar pra ele, já impunha respeito, (papai era filho de Ogum), gostava muito de fumar charuto, usava chapéu panamá, é naquela época, chapéu panamá era moda e muito fina, seo moço, aqui na Bahia, nos dias de lavagem do Bonfim, papai se arrumava todo desse jeito, não ia trabalhar, aquele dia era sagrado, tivesse o que tivesse, papai se vestia todo de branco, terno, gravata, calça de linho, chapéu panamá, charuto na boca, sapato de verniz, duas cores, o fino da onda, e ele ia lá para a Conceição, esperar o cortejo sair, e desse modo, fumando um charuto e se abanando com o chapéu, papai ia ao ritmo das batucadas e charangas e orquestras e chegava lá, a pé, e com muita fé, de quando em quando, no ritmo da capoeira, ele arriscava uns golpes, pra não esquecer de todo o que aprendera na juventude, papai era um senhor capoeirista, aprendera nas rodas dos mais velhos, que por sua vez, aprenderam com os avôs africanos, a arte da capoeira, papai era bom,mas, depois, começou a trabalhar, formou família, começaram as responsabilidades e preocupações, não teve tempo de treinar mais não, mas, de quando em vez, de vez em quando, papai ia até o Largo do Pelourinho e relembrava um pouco os passos da capoeira, para não esquecer de todo, já diz o ditado que "quem aprende nunca esquece, não é moço ? mas, tem coisas que a gente tem que treinar pra não enferrujar, com todo mundo é assim, com papai não deixava de ser diferente, pois é, como eu ia lhe dizendo, é que uma coisa, puxa a outra, como eu ia lhe dizendo, papai ia saindo um dia do cais, bem de noite, bem tarde, e ai, apareceram três indivíduos querendo tirar idéia com ele, ele ficou na dele, não era possível uma coisa daquelas, e ele disse para os homens, "rapaz, deixa isso pra lá, eu tenho que ir pra casa, ‘tou cansado, vocês também devem estar cansados, o dia de hoje foi puxado, eu vou pro meu lado e vocês pro seu..." e nada, um deles veio e empurrou meu pai, o outro tentou tirar a sacola que ele levava com as roupas de trabalho e o terceiro avançou pra ele com um punhal; meu pai, entendeu a situação, aquele pessoal não ‘tava para brincadeira. Ele se encostou à parede, procurou proteger-se e tomar pé da situação, a luz, bem fraca, que naquela época, a iluminação não era igual a esta agora, uma luz bem fraquinha mesmo, mas, papai enxergava bem, tomou pé da situação, chamou por Ogum, "agora, somos nós dois, o Senhor e eu", arriou rapidamente a sacola no chão, e quando voltou já aplicou um rabo de arraia no primeiro que avançou querendo lhe dar uns tapas, derrubou o homem; um tesoura voadora no segundo, uma meia-lua no terceiro; um a um se levantou, um a um, ele derrubou; depois, os três se levantaram e avançaram nele de uma só vez, e de uma só vez ele derrubou os três. E papai de pé, parecia que ‘tava começando a briga naquela hora, inteirinho, quando ele pensou que os três iam de novo atacá-lo, os três saíram correndo, papai pegou a sacola que estava no canto da parede e saiu, graças a Deus, chegou em casa, são e salvo, ele dizia, que quem lutou não foi ele, foi Ogum, Ogum que estava em todas as suas lutas e Ogum lutou por ele. Papai tinha razão, na verdade, papai sempre tinha razão, ou melhor, na maioria das vezes, papai tinha razão; quando maínha não concordava com o que ele fazia, maínha se manifestava, mas, maínha era uma mulher muito doce e carinhosa, uma filha de Oxum e como filha de Oxum excelente mãe, boa esposa, nunca vi eles brigando, sempre se deram muito bem, excelente dona de casa, sabia cozinhar muito bem, tinha o seu jeito doce de dizer e fazer as coisas, sem querer ferir, nem magoar, sempre prestativa, mainha era um doce, adorava deitar no seu colo e sentir, nos meus cabelos, mãos tão delicadas d'Oxum acompanhadas de uma canção que ela aprendera com minha vó, que aprendera com minha bisavô e daí adiante, já sabe como é essas coisas né ? E dessa forma ela me embalava até dormir e sonhar qu'eu ‘tava brincando no paraíso, com peixinhos bem pequenos, coloridos, de aquário e com Janaína. Interessante, a canção moço, cantada toda em ioruba, lá na língua dos meus avôs, era uma canção muito triste, que falava de distância, separação, saudade... era muito triste, às vezes, parecia um gemido, mas, quando mainha cantava baixinho, baixinho, eu adormecia. É moço, tem coisas na vida que se a gente pudesse, não deixava ir, não deixava passar, só ficavam, ficavam e ficavam como um encantamento e como que encantadas as pessoas que amamos... É esses degraus não são mole não, seo moço, ...ai, isso ai dói tudo, dói os joelhos, dói a coluna, dói as pernas,dói os olhos, dá um zumbido no ouvido, dói a cabeça, dói tudo seo moço; às vezes, dói até na alma, dói até na alma seo moço, saber que tudo ‘tá tão mudado né? Antigamente moço, aquilo tudo lá embaixo era uma mata só, tudo verde, verdinho, o ar puro, muita folha para banhos e remédios agente encontrava ali, e bichos à vontade, às vezes, cansava de dar de cara com os micos e as famílias, brincalhões que só eles, comendo de tudo que tinha ali: mangas, cajus, pitangas, araçás, jacas... Olhe, naquela mata as folhagens eram uma grande bênção. Tinha folha pra tudo que vosmicê puder imaginar: folha pra dor de cabeça, pra tensão alta, pra insônia, pra canseira, pra tontura... Tudo, tudo, tudo que você imaginar a gente tinha ai embaixo; as folhas seo moço, são tão boas, sem folhas a gente não vive, as folhas são a vida e o sangue da terra; hoje tá tudo ai, tudo assim, que é só asfalto, asfalto e quentura, depois dizem que é tudo pelo bem do progresso, ora mais home quá, progresso, progresso, que progresso é esse seo moço que nos afasta daquilo que somos, que nos torna distantes das nossas origens e nos empurra a um mundo onde já não somos nós quem vive e já não se sabe mais quem é, correndo em busca do quê ? Etá véia pra falar hein? Vosmicê veja que coisa interessante, eu vinha subindo primeiro, vosmicê veio depois e me alcançou, e me faz companhia nessa subida, e eu só aqui tagarelando, só falando de mim, de minhas lembranças, parece até que sou museu não é verdade? Falando de tanta coisa velha, antiga, tanto passado... O passado passou, passou e acabou, é assim que dizem, não é ? vosmicê é engraçado, só faz balançar a cabeça, ainda não ouvi o som de sua voz...é isso mesmo, parece até ser gente de Oxalá, calmo, tranqüilo, de boa paz...mas, como eu ‘tava dizendo, o passado já passou, o futuro só Deus sabe, o presente é a única certeza que nós temos seo moço, e o presente, é um grande presente, o tempo moço é sábio e Deus é bom! Sabe moço, não sei o que seria de nós, sem o passado, sem saber do passado, jamais entenderíamos o presente, o presente é construído no tempo que passa; para que possamos planejar o futuro seo moço, temos que amar e respeitar o tempo, o tempo que nos temos e ganhamos do Alto, e aproveitar da melhor maneira possível, não estou sendo uma velha chata, o tempo seo moço, vosmicê bem sabe, é água de rio, que se vai e jamais retorna. O tempo é mais precioso do que ouro; muitas vezes se tem o ouro, mas, não se tem o tempo ai, o ouro já não vale mais nada. Ai....deixa eu parar aqui um pouquinho, pra descansar; ali é a casa de Dona Lulu, um vizinha antiga, aqui desde os tempos em que eu era menina; vendia doces naquela portinha, os doces faziam sucesso viu ...e na festa de Cosme, ai meu Deus, na festa de Cosme era uma pândega, tudo quanto era menino daqui, vinha para a casa de Dona Lulu para a festa de Cosme, era porque nesse dia, ela fazia cocadas e docinhos especiais, queimado de puxar, tudo isso para a festa de Cosme e toca a chamar os meninos da redondeza, é menino que não acaba mais, não sei de onde sai tanto menino; eu mesma vinha, e vim muitas vezes, etá pau, era doces, enchia os bolsos de doces e cocadas, depois dividia com umas primas, porque eu, eu não ia comer aquilo tudo sozinha não, oxente, pra ficar com desinteria,...hum, Deus que me livre! Hoje ela já tá bem velhinha, mas, as filhas ainda continuam a tradição. Ai, ai, já respirei. Vou começar a subir, agora falta pouco, você é um bom companheiro, ‘tá junto, não fala nada é verdade, ai calado, bem na sua, como diz minha neta, concordou em me esperar, mas, é bom, é bom que a gente respira, depois de tanta escada,‘inda bem que falta pouco. Você é jovem, mas eu não moço, o que seria de mim, subir essas escada, sem a ajuda deste guarda-chuva...guarda-chuva bom viu!....é desses que ‘guenta tranco....'inda bem que o tempo ‘tá firme, nem chuva, nem vento, mas, o sol ‘tá castigando. Agora, eu vou lhe dizer uma coisa, eu gosto muito das chuvas, das tempestades e dos relâmpagos, eu acho uma beleza, uma maravilha seo moço, um espetáculo da natureza, aqueles raios riscando o céu, que maravilha, e os trovões... coisa de Deus e de minha mãe Iansã, Epa hei e o meu pai Xangô, Kaô Kabessilê, coisa é enfrentar essa escadaria com chuva, eu não lhe disse, imagine, mas, é isso mesmo, o negócio é esperar a chuva passar e depois descer, ou subir não é verdade, olhe, essa vida é de luta, mas é boa viu....não acha ? não concorda ? quando eu vejo que o meu pai Xangô e a minha mãe Iansã, senhora tão guerreira, altiva e poderosa, assim como o meu pai Ogum e o pai Oxalufã, guerreiros nesta vida e na outra, só nos cabe, aprender com eles e como eles, a arte da guerra diária, na verdade uma guerra santa, vencer os obstáculos que nos são impostos, e aprender com as vitórias e derrotas. É moço, chegamos, eu moro aqui nesta casa aqui em cima, deix'eu pegar as chaves. De lá de baixo o senhor pode ver, quando passar por aqui, uma casa de paredes brancas e janelas vermelhas (é a cor do meu santo ), número dez, daqui eu vejo tudo o que se passa lá embaixo, a subida é um pouco cansativa, mas, vale o esforço, vejo boa parte da cidade; vejo as pessoas correndo pela vida e atrás do tempo; a angústia de quem fica e o alívio de quem parte; a solidão, o desespero, o desamparo; o aconchego e o abandono; o estímulo e o desprezo, os dias coloridos e os dias cinzentos, a guerra diária, que empreendemos, que apreendemos e onde aprendemos, quando o rir e o chorar é uma constante, mas, as lágrimas e as dores são lavadas sempre com as águas da paz que Oxalá, Babá Ekê, nos traz e abençoa. É seo moço, daqui se vê também o céu azul, em todos os seus tons, inclusive, suas estrelas brilhantes, cadentes e ascendentes, bem mais de perto, os tons rosa-amarelo do por do sol, ao fim da tarde, não tem igual, são tons e traços que nenhum artista desenha, assim como a beleza do horizonte, nenhum artista traduz em palavras. Vosmicê vai mais adiante ou só veio até aqui pra me fazer companhia? Olhe, eu sou muito franca, vosmicê é uma boa companhia, é de muito boa paz, mas, não fala nada, eu ‘tou matracando, matracando,matracando desde lá de baixo, e vosmicê nada. Mas, é isso mesmo, tudo tem seu tempo, carangueijo por ser apressado nasceu sem pescoço não é verdade? Eu não vou me adiantar ao tempo não. Vá direitinho. Nosso Senhor Jesus Cristo que lhe acompanhe e lhe dê sempre a paz. Até mais ver.