Fátima Trinchão
Poesias, Contos, Crônicas
Textos
A CORRIDA DE MACÁRIO


     "Segunda-feira primeiro dia de trabalho, primeiro dia da semana, não podia chegar tarde a Firma. Tal era a sua ansiedade, que, durante a madrugada não dormira; queria ser o primeiro a levantar-se e utilizar o banheiro, vez que, tratando-se de uma pensão, onde os cinco quartos eram alugados, havia ali, para tanto hóspedes, somente dois banheiros e na hora que todos queriam utilizá-los para iniciarem os compromissos do dia, tinha briga, porque uns achavam-se no direito de permanecer mais tempo nos banheiros que outros, mas, ele, ele era um sujeito de paz, preferia acordar bem cedo e ser o primeiro a utilizar um dos banheiros, a indispor-se com quem quer que seja.
     Macário, esse é o seu nome, sempre foi um sujeito tranqüilo,pacato, leal, boa praça; nascido numa pequena e aconchegante cidade do interior, distante aproximadamente quinhentos quilômetros da capital. Filho de pessoas simples, honestas, ordeiras, teve sempre o desejo de estudar, melhorar de vida, dar mais tranqüilidade à sua família e não teve outra opção a não ser ir morar na capital,onde conseguiu através de testes e cursos e currículos, conseguiu um emprego de contador, numa pequena firma de prestação de serviços. Inicialmente Macário vinha a capital e hospedava-se em casa de pessoas amigas, prestativas, porém, não poderia ser sempre assim. Com o seu objetivo alcançado, Macário fez as malas, despediu-se da família e rumou para a capital. No ônibus interestadual, de poltronas bem juntas e acolchoadas, à medida que o ônibus rodava pela estrada nem sempre asfaltada, sua pequena cidade ia-se distanciando e a capital tornava-se cada vez mais perto. A capital, cidade grande, gente de todas as "tribos";de todas artes; de todos os credos. Gente apressada, gente correndo; gente ficando, gente passando, gente...muita gente e problemas, problemas e soluções, trânsito, ônibus cheios; carros, muitos carros, e em torno de tantos carros, muitos, muitos engarrafamentos...tantos que, chegava até a dar assim umas coisa diferente, tipo assim umas agonia nas vista, como diz seu pai, o Seo José Macário, mas também, a capital, não tem só probrema não,a capital tem muita alegria e diversão,e a capital em particular, é a capital do carnaval, da festas de largo, da fé, dos shows, do sol, das praias, da orla, do riso largo e e solto, quase uma gargalhada; da alegria vibrante, de todas as cores, de todos os tons, de todos os santos. E assim ele vinha pensando, e pensando, pensando, seus pensamentos misturavam-se criando-lhe um confusão colorida....àquela hora, mesmo no ônibus interestadual que fazia a linha com a capital, o sol, com um calor que beirava os trinta e sete graus, não lhe dava tréguas, cáustico o astro-rei, estava longe do seu declínio, o suor invadia-lhe a testa, ombros, axilas, pernas e cotovelos, deixando-lhe seca a garganta. Seis horas de viagem, em um ônibus coletivo sem o mínimo conforto, estradas esburacadas e a cada buraco um tombo e a cada tombo dóia-lhe as costelas e coluna reclamando-lhe os maus tratos. Mas, tudo aquilo era aceitável, pois, Macário lutava por uma boa causa. Ao chegar a Capital, com as pernas e costas em frangalhos e o corpo peguento de suor, deu graças ao Senhor do Bonfim por ter chegado, chamou um táxi, pois que, as malas e mocós que trazia consigo não lhe permitiam andar de ônibus, chamou um táxi, ajeitou os trecos, sentou-se. O motorista fez-lhe então a clássica pergunta
- Para onde senhor ?
Macário tira, desajeitadamente uma meia folha de papel do bolso, lê, guarda a folha de papel e dispara:
- Rua do Vai-Quem-Quer, sem número, casa salmão, no meio da rua, Pensão de Dona Odete, também conhecida por Detinha,vizinha do Seo .................
- O motorista, na verdade ficou sem entender aquele endereço, que coisa estranha....
- Senhor, esse endereço é um pouco difícil para mim, está um pouco vago; dessa forma não tem como entender...
- Mas foi esse o endereço que me deram....
- ...pois é amigo, mas assim é difícil pra qualquer um, e olha que eu conheço tudo quanto é canto dessa cidade...
- ...e não conhece a rua do Vai-Quem-Quer ?
- ...não, nunca ouvi falar...
- ...então não conhece tudo....
- ...bom, sob esse ponto de vista, o senhor tem razão, dessa rua nunca ouvi falar e eu já tenho anos de praça...o senhor não tem outra referência....quem sabe uma igreja, um estabelecimento comercial, uma escola, um hospital...
- Pois é, se o senhor não sabe, quanto mais eu....
- Tive uma idéia, o senhor não é daqui; alguém lhe informou sobre essa pensão, será que não lhe deram o telefone ?
- ...peraí, 'xê eu vê....

          E dizendo isso, pôs-se a futucar nos bolsos do paletó, nos bolsos da calça, nos bolsos da camisa, de trás pra frente, de frente pra trás, até que...
- ...achei, achei aqui o papel...olha tem aqui o endereço e um telefone, acho que é celular....

     E dizendo isto, entregou o tal papel ao motorista que leu, leu, coçou o queixo, pensou e concluiu:
- Senhor, só vejo um saída pra nós dois, vamos ligar pra esse número, se lhe deram é porque deve ser o número de Dona Odete, ou no mínimo de alguém da pensão...

Puxou o seu celular do bolso e ligou:
- Alô ....é da casa de Dona Odete ?
- .....
- ...é que tem um passageiro aqui, querendo ir pra ai, pra casa da senhora, mas, não me deu o endereço direito, a senhora pode me dizer por onde chega aí....

- ...digo sim, é pertinho, oxente, é aqui no subúrbio, pertinho, o senhor não sabe esse endereço ?...
- ...não senhora, eu 'tou aqui na rodoviária e desde que ele chegou eu não fiz outra coisa a não ser tentar descobrir o seu endereço....
- ....não tem errada não, sabe onde é o Beco da Lagosta, o senhor vem, vem, vem pela rua principal, passa pelo beco do siri, vira a esquerda e ai o senhor vai ver a uma ladeira bem em pé, é a ladeira do quebra bunda, o senhor sobe, sobe, sobe, bem devagarinho porque vem carro nos dois sentidos , depois o senhor chega num largo, é o Largo do Tubarão, é bem grande, passa pelo largo entra na rua do fininho, vem, vem, vem, passa pela avenida Maria Donzela, depois a Conde de Tapioca, vira a esquerda, depois da conde de tapioca é a vai-quem-quer, ai é só procurar a Pensão de Dona Odete, na parte do meio, é uma casa salmão, sem número, é fácil, fácil, fácil; se o senhor fizer desse jeito, como eu 'tou lhe dizendo, não tem errada e diga ao moço que ele pode vir, que aqui ele será bem tratado, tratado como um príncipe, ou melhor, um marajá...
- Meu Deus, que fria, pensou o motorista.
- ...e ai, já sabe onde fica ?....perguntou apreensivo Macário.
- ...pertinho, pertinho, pertinho....umas duas horas e meia de viagem....

      Macário suspirou, já não agüentava mais tanta viagem longa; sua vontade era chegar, tomar um bom banho e ir dormir. De repente seus pensamentos são interrompidos, o motorista do táxi, afinal lembra-se de dar-lhe o recado; somente a parte final, é bem verdade, mas, a que lhe pareceu mais importante para o passageiro:
- Dona Odete mandou lhe dizer que lá na Pensão, o senhor será tratado como um rei, um rei não, um imperador.

     E dado o recado, ligou a máquina, encaixou a primeira e pé na estrada, aquele roteiro, certamente, daria algo em torno de duas horas e meia a três horas, na melhor das hipóteses. O motorista tentou travar uma conversa, perguntou a Macário:
- Qual o seu time?

     Macário carregou o sobrecenho, pensou, olhou para o teto do carro, numa atitude quase contemplativa e finalmente respondeu :
- Nem um nem outro, eu sou Brasil; meu negócio é quando a seleção brasileira joga, ai sim, não tem pra ninguém....
- Ah! eu pensei que o senhor fosse Bahia....
- Olhe homem, eu tô é com sono, com fome e cansado...a viagem é longa.....
- Ah! Dê um cochilo, vamos demorar pra chegar, fique tranqüilo que quando chegar, eu lhe acordo.

      Macário não contou dois tempos. Fechou bem os dois olhos, relaxou os ombros e as pernas até onde lhe permitia o pequeno espaço oferecido pelo Fusquinha bem conservado, do gentil motorista.

- Ei, ó homem, acorda, já chegamos, homem......Chegamos, disse-lhe o motorista do táxi, é aqui a Pensão de Dona Odete...

          Macário acordou assustado, abriu os olhos, não teve idéia de quanto tempo se passara, só sabia que, aqueles minutos de sono, valeram. Pagou ao motorista que gentilmente ajudou-lhe a retirar as malas do carro e colocou-as na porta da Pensão. Dona Odete, vestida num robe estampado azul e branco, à porta da casa, dava-lhe as boas -vindas com um sorriso largo e olhar compreensivo, abriu os braços, num gesto de carinho e acolhimento; naquele instante, naquele exato momento,naquele momentinho, Macário sentiu uma imensa saudade de casa. No dia seguinte Macário iniciou a sua jornada bem cedo, começou com um banho animador, um rápido café com pão e seguiu para o ponto de ônibus, que distava quase meio quilômetro da pensão,foi correndo pois, tinha medo de perder o horário, e como era seu primeiro dia no emprego,não podia permitir que, logo no primeiro dia, chegasse atrasado,já tinha de há muito, todas as informações que o levavam ao seu emprego, no outro lado da cidade, e com o mapa à mão dirigiu-se apreensivo para o ponto de ônibus, teria que pegar três coletivos para chegar ao seu trabalho, já que, não havia linha direta, em verdade em verdade, não sabia ele, o que era subir e descer dos ônibus no horário em que todos precisam chegar aos seus empregos. Terno completo, sapatos bem escovados, óculos de grau, barba bem feita, uma loção masculina completava-lhe o trato com a aparência e à mão esquerda levava uma valise onde guardava alguns livros, calculadora, canetas, etc., estava Macário, incrivelmente impecável,parecia até, comparando bem, e resguardando-se os devidos limites, aos modelos mais famosos e bem-sucedidos das revistas de moda francesa. Macário olhou para o relógio, sete horas e trinta minutos, estava num bom horário, bateria ponto às nove horas, com tolerância máxima de trinta minutos, logo, concluiu, teria muito tempo para chegar. Ele não sabia da missa, a metade ! Dirigiu-se ao ponto de ônibus a passos miúdos, tranqüilamente, sem querer transpirar, afinal, não ficava bem, chegar ao trabalho, no primeiro dia, transpirando. Chegando ao ponto de ônibus, surpreendeu-se ao vê-lo repleto de pessoas, que, como ele, tinham o mesmo objetivo, chegar cedo ao trabalho, mas, mesmo assim, não exasperou-se, firme, com a valise à mão, empertigou-se, olhou para o céu, pensou: que lindo dia! Aprumou-se e imaginou: "Ah, não vai demorar, daqui a pouco estará aqui", ledo engano ! Os ônibus demoravam e muito e quando vinham, vinham com gente saindo pelo "ladrão", a linha que o levaria à firma, parecia ser a mais concorrida e já haviam passado três coletivos e ele sequer, conseguia chegar à porta, ainda que quisesse era sempre desencorajado pelos passageiros que viajavam pendurados e que aos gritos diziam: "Não dá não, nem venha!", ouvindo isso ele retornava ao lugar que para, sempre esperançoso que o próximo coletivo, viesse mais vazio. A essas alturas, um horas já havia se passado, o suor começava a tomar conta de sua testa e axila, consultava o relógio a cada três minutos, e a cada três minutos olhava para o caminho que trazia a condução, parecia agora, que os ponteiros do relógio andavam mais depressa, num ritmo assaz desesperador. Um senhor que estava a poucos metros dele, e observava a sua angústia, aproximou-se e perguntou:
- Você é novo aqui não é rapaz ?
- Sou sim...
- É 'tou vendo, 'ocê não tem muita tarimba não....'tá perdendo um tempão aqui....
- ...e eu tenho opção ?
- Tem sim rapaz, vá lá pra o fim de linha...lá 'ocê pega o ônibus mais vazio, porque aqui, aqui nesse horário, só passa assim ó, bem cheio, vixe Maria, não dá nem pr'ocê chegá na porta...tá doido....eu se fosse você, me mandava pro fim de linha...

- ...e tá longe ?.....
- que longe que nada....é ali ó......
E apontou com o beiço inferior para a suposta direção do final de linha. É desse jeito não parece ser muito longe não, pensou Macário..
-...'brigado, vou dar umas palhetadas até lá....
- É milhô rapaz, 'ocê vai ver e vai me agradecê....
- ....'brigado.

            E foi o rapaz, agora já caminhava a passos lépidos, já não ligava mais para o suor que descia-lhe da cabeleira bem cuidada e curta, escorrendo pelo rosto, empapando a camisa de suor e de angústia; já não mais olhava o relógio, cujos ponteiros pareciam saltar a cada passo que dava, ofegante parou em frente a um barraca, depois de muito andar, perguntou ao vendedor, onde era o ponto de ônibus, o vendedor disse-lhe, é ali, ali ó....e apontando com o lábio inferior, para Macário, que já havia andado uma boa porção, indicava-lhe que deveria seguir em frente, visto que, pelo muito que já andara, não tardava em encontrar o final de linha; a essas alturas, já trazia o paletó na mão esquerda, a valise dobrara de peso e o lenço, encharcado de suor. Enquanto caminhava, veio ao seu encontro um garotinho, podia ter uns onze a doze anos mais ou menos, dirigiu-se a ele:

- Ei moço, tá indo pro fim de linha ?
- 'tou sim, por quê ?
- Por que, em vez do sinhô vir por aqui pelo asfalto, que é mais cansativo e faz mais calor, o sinhô pode pegar aquele atalho ali ó, é mais perto; assim o sinhô se cansa menos e chega mais rápido..
-...e é ? mas eu posso me sujar...
- ...que sujar que nada....tem ali aquele caminho ó...o sinhô vai por ali, não dá pra sujá não...o fim de linha é logo ali na frente...
- É, e eu tô com tanta pressa, que eu vou seguir o seu conselho, 'brigado pela ajuda...

         E assim fez Macário, desceu um caminho um pouco íngreme, tomou o atalho recomendado, entrou num caminho com uma trilha bem estreitinha. O resto tudo era mato, mato bem alto, que não dava nem para ver o que tinha lá em cima; não dava nem para ver a estrada passando e também as pessoas; mas, Macário tinha pressa, muita pressa, não dava mais para esperar o ônibus no local em que ele estava não lhe era possível mais, pegar o ônibus, de tão cheio que vinha. Durante a madrugada, havia chovido, nem muito forte, mas também não muito fraco; a chuva chegou a fazer algumas poças na trilha e Macário, na sua ânsia por chegar e buscando sempre olhar para cima não percebeu que à sua frente uma imensa poça de lama tomava-lhe o caminho e de inopino deu com ambos os pés n'água e surpreso e irritado percebeu após aquele incidente que a boca de sua calça sujara, sujara de lama; parou, abaixou-se para ver o que podia ser feito para contornar aquela situação e percebera que nada, nada mais poderia ser feito..Estava indo para o trabalho, primeiro dia, enfrentara tantos contratempos e aquele seria apenas mais um, na coleção de trapalhadas com que a vida lhe brindara...Não era momento de aborrecer-se ou irritar-se, os ponteiros do relógio corriam célere e já não era possível parar para pensar em algo mais que não fosse pegar aquele ônibus que para ele já se apresentava como um desafio àquelas horas da manhã. Continuou a sua caminhada batendo os pés para espantar a lama que lhe ficara presa aos sapatos, depois de algum tempo caminhando, chegou ao ponto final e lá percebeu que, mais uma leva de ansiosos passageiros, aguardavam o coletivo; afinal, apontou o ônibus no início da rua, todos levantaram-se como uma só pessoa, e a todos um só pensamento: era agora ou não mais seria possível chegar ao trabalho ou outros compromissos no horário. Músculos contraídos, tensos...chegou o coletivo no ponto do fim-de-linha. Antes de abrirem a porta muitas pessoas atracavam-se uns sob as outras, no desejo maior de encontrarem um lugar para sentar-se, se possível, ao lado da janela;se não, sentados, e outros ainda que não conseguissem nem uma coisa nem outra, desejavam ao menos, subir no ônibus e chegar ao seu destino. Macário, em alerta, segurou firme a pasta, e preparou-se para enfrentar também aquela leva de passageiros; abriram as portas do coletivo. Todos queriam entrar de uma só vez, não era possível, sucediam-se empurrões, xingamentos, e grosserias; naquele momento, Macário perdeu o comando de si, e foi levado de roldão por outros que estavam atrás dele e mantinham a esperança de um lugar no ônibus, de repente, viu-se já dentro do ônibus, e acredito, para ser sincero e honesto, não soube como fora parar ali; lembrava-se é verdade, que ao seu lado,dois musculosos rapazes também, ansiavam por entrar no coletivo, Macário teve a ligeira impressão que foi içado, já que, como encontrava-se de uma certa maneira impedindo o acesso dessas pessoas, foi içado, gentilmente pelos jovens que conseguiram ocupar os últimos assentos livres. Macário contentou-se em viajar em pé, segurando as barras de ferro e respirando e suspirando toda vez que alguém passava por ele, pois, nesse meio tempo, o ônibus encheu, ficou lotado, gente a sair quase pelas janelas e a porta não fechava, o motorista já não parava mais nos pontos para recolher passageiros e o calor, cada vez mais, insuportável. Macário virava-se como podia, no banco, um dos rapazes que lhe içara na entrada, ao ver que Macário era empurrado ao seu encontro, empurrava-o de volta ao corredor dos passageiros, aumentando-lhe a agonia, e nesse vai-e-vem, aponta do fundo do corredor, uma senhora; trazia uma trouxa de roupas lavadas na cabeça, e com as mãos livres apoiava-se nas barras de ferro, ao passar por Macário, este curvou-se um pouco, buscando chegar para a frente, dando-lhe espaço para passar, porém, no exato momento em que a senhora e sua trouxa passavam, o jovem sentado ao banco, deu-lhe um empurrão com o braço, que o pobre Macário foi , indesejadamente, mas, sem ter como resistir, ao encontro da senhora,que vendo-lhe cair, praticamente nos seus braços, assustou-se e não deixou por menos:

-Venha cá, você não 'tá me vendo aqui não ?
- Eu tô vendo sim, mas, não foi porque eu quis, a senhora sabe....o ônibus 'tá cheio....
- Você tá procurando ousadia...
- O que é isso senhora, ousadia nenhuma, o ônibus 'tá cheio....
- ...tá cheio assim todo dia, você não é daqui não ? De onde você é ? É de outro planeta é ?
- Senhora...eu não tive a intenção....
- ...olhe, ainda é mentiroso.....

         A essas alturas os demais acotovelavam-se para ver a discussão,ainda que lotado, arranjaram um espaço considerável foi formado em torno de Macário e a senhora, e o burburinho ia aumentando entre os passageiros: "O que foi ?" perguntavam uns; "Ele procurou ousadia", respondiam outros; "ela está certa!", diziam outros tantos. E o bate-boca continuava:
- Você tem cara é de sonso...
- Minha senhora, eu já lhe disse, não foi culpa minha, o ônibus 'tá muito cheio...
- ..cheio nada, cheio nada, olha aqui quanto espaço em volta de nós, olha aqui.....

        Macário pensou: "Meu Deus, logo essa, aqui comigo.,..como é que pode ?" E a senhora continuou a falar:
- ..Você é sonso...mentiroso...não sei onde é que eu 'tou que não lhe dou uma lição...
- ...já lhe pedi desculpas...e eu não sei qual a lição que a senhora pode me dar...

      Dito isso, Macário virou as costas, pensou, vou deixá-la falando sozinha, mas, um engraçadinho, do fundo do ônibus disse:
- E ai minha tia, vai deixar por isso mesmo é ?
- ...é...é...ele tem razão, vai deixar por isso mesmo minha tia ?

      Macário estava tenso, de costas não viu passavam por o que estava para lhe acontecer. A senhora tomou distância, fechou as mãos, enrijeceu os punhos e atirou contra Macário um direto de esquerda,Macário caiu de uma só, tombou como uma jaca mole, não viu nem quem o atingiu. O engraçadinho provocador de antes pontuou:
- Vencido por nocaute...
- Êpa, motorista 'peraí que o meu ponto já passou, peraí....

         E o passageiro-espectador, foi abrindo caminho entre a multidão que, após o ocorrido, agora só pensava em chegar ao seu destino. Um depois do outro, ou muitos ao mesmo tempo,passavam por Macário e sequer o olhavam, sequer preocupavam-se com ele, após alguns minutos de desagradável diversão que ele, involuntariamente, lhes prestara, fora esquecido e ali no corredor permanecia sem que os demais se dessem conta; sua pasta, fora levada, acredito que por engano, entre um passar e outro os sapatos tomaram destino variado, a camisa rasgou em algumas partes, a calça, já não tinha mais cor, até que alguém mais generoso, lembrou-se de arrastá-lo para um banco que encontrava-se vazio; jogaram-lhe ali, do jeito que deu, uma perna em cima do banco e a outra arrastando-se ao chão; um braço em cima da barriga e o outro, no ar; ali, assim, exposto aos freios e solavancos do ônibus; até que, quase ao final da viajem alguém o notou, esquecido no banco, por mais fortes e intensos que fossem os solavancos Macário não acordou, e este alguém disse:

- Rapaz, o homem inda tá dormindo, vai deixar ele ai é ?
- Pô, o jeito é chamar os homens de branco......
- É rapaz, não tem outra.....o mané apagou mesmo....

       Macário acordou numa enfermaria do Hospital público da cidade; havia esquecido nome, endereço, nacionalidade. Não sabia sequer em que país estava. Depois de alguns dias, recobrara a memória, contou com a dedicação dos médicos e enfermeiros e com a amizade e solidariedade de D. Odete que, aflita com a sua ausência, já ele saíra, naquela segunda-feira, e não mais retornara, D. Odete veio encontrá-lo após muita procura e andança pelos Hospitais, Clínicas e Delegacias da cidade, comunicou à sua família, esteve com ele todo o tempo, consolando e incentivando-lhe.

- É isso mesmo, meu filho, bola pra frente, a vida é assim mesmo...
- É dona Odete, que coisa....
- Pois é, vamos esquecer, pensar no futuro...

       O certo é que, Macário, recuperou-se logo, a família logo retornou à sua casa, e logo, logo com a sua dedicação e atributos, conseguiu outro emprego. Os colegas simpatizaram com ele, era atencioso, gentil, nobre nas suas ações, mas, tinha uma mania estranha, Macário só pegava o coletivo se tivesse lugar ao lado da janela, caso contrário, esperava tantos quantos se fizessem necessários; mesmo que, lugares sobrassem ao lado do corredor, ele preferia esperar outro coletivo, ainda que para isso, tivesse que madrugar, literalmente, e muito, no fim de linha de ônibus. "




 
Fátima Trinchão
Enviado por Fátima Trinchão em 05/01/2009
Alterado em 01/03/2020
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