LEMBRANÇAS II
O DOMINGO
No domingo, pela manhã bem cedinho, a mesa posta, e bem posta, para dois. A toalha bordada enfeitava a mesa e a sala, prestando ao ambiente um ar agradável e aconchegante; duas xícaras de porcelana branca e respectivos pratos ocupavam as extremidades do móvel quadrangular. Frutas frescas como maçãs, uvas, abacaxis, melões, ameixas; pães de mel e de queijo; jarras com coloridos sucos de acerola e pêssego; leite, café, chocolate e um pequeno arranjo de flores silvestres, de cores variadas. Coroando o início da manhã, Liszt, Bach, Bethoveen; depois do banho morno matinal, sentavam-se à mesa, e juntos deliciavam-se com os frutos que a terra lhes proporcionava. Assim daquele jeito, sentia-se ele, o mais feliz dos mortais. Toda aquela atmosfera de paz e harmonia era preparada por ela; durante a semana, por vezes, no trabalho, ele pegava-se divagando, sonhando com o domingo, suas cores, sua alegria, sua felicidade. No domingo, ali, no seu pequeno reino, as notícias tristes e tudo o mais que delas pudesse advir, estavam proibidas. Não abririam os jornais, como comumente o faziam durante a semana. Aos domingos, decretaram que todas as alegrias ali viriam como o sol que penetrava alegremente pelos vidros das janelas que rodeavam o pequeno apartamento; propositalmente, ela puxava as cortinas para que o sol entrasse deixando à mostra, toda a intimidade da sala, inclusive, aquela mesa bem posta. Nada ou muito pouco se diziam, visto que, a cumplicidade lhes era tamanha, que mais nada precisavam dizer; as carícias freqüentes substituíam as palavras, mãos dadas, olhos que se buscavam, mãos que acariciavam rostos e cabelos, silêncio que falava todas as palavras que poderiam ser ditas, escreviam, pois, sem palavras, só com gestos e carinhos e sentimentos uma ode ao amor. Após, terminada a refeição matinal, gentilmente, ela sempre se dispunha a ler algumas poesias e trechos de obras históricas ou filosóficas, porém, para os domingos, a poesia lhes era de importância singular, preguiçosamente, ele deitava-se no colo dela, e ela, acariciando-lhe os cabelos, lia, e recitava poemas de vários autores, que lhes caiam muito bem. O amor é fogo que arde sem se ver/ é ferida que dói e não se sente/ é um descontentamento descontente/ é dor que desatina sem doer/ É um não querer mais que bem-querer/ É solitário andar por entre as gentes/ É nunca contentar-se de contente/ É cuidar que se ganha em se perder./ É estar-se preso por vontade própria/ é servir a quem vence, o vencedor/ é ter com quem nos mata, lealdade/ tão contrário a si, é o mesmo amor. / Mas como causar pode a seu favor/ nos corações humanos, amizade / Se tão contrário a si é o mesmo amor ? Luiz Vaz de Camões, Soneto 11.
Na praça da cidade, em verdade um grande jardim, um campo, caminhavam juntos de mãos dadas, sem presa, enchendo de ar os pulmões, regozijando-se com tudo e todos e mais especialmente com a natureza que existia em volta e pelo caminho. Sorridente ela lhe dizia: “Meu Deus, que dia lindo, eu não trocaria isto aqui, este momento por nada”. Ele assentia com gestos de cabeça, concordava plenamente, tudo ali, era um presente divino. De quando em quando, seus passos eram interrompidos pelas piculadas e correrias das crianças, pelas bolas de futebol que não poucas vezes, passavam macias e manhosas, pelos cães e gatos, como um que certa vez, aconchegou-se aos seus pés, buscando carinho e proteção. Assim era o domingo, imenso, grandioso, com as pequenas coisas que ao sabor da felicidade tornavam-se grandes, potentes, gigantescas fazendo com que mais e mais se estreitasse o amor que lhes coroava e o companheirismo crescesse a cada momento vivido. Ao retornarem, esperava-os um bom almoço caseiro, a base de legumes, trigo, soja, e verduras e mais tarde, depois do descanso um bom cinema ou uma boa peça de teatro eram programados.
- Diga-me, o quanto você me ama ? Perguntava-lhe ela.
- Eu ? O quanto eu te amo?
- Sim, eu quero saber o quanto você me ama...
- Eu a amo muito....respondia-lhe intrigado.
- Quanto ? Um campo de futebol? Insistia.
- Muito mais...muito mais....
- Dois campos de futebol ?
- ...mil campos de futebol, mil campos de futebol, muito mais, muito mais....
Riam, imensamente felizes, e ele pensava: muito mais, muito mais, pois que, como Florbela Espanca, “Minh’alma de sonhar-te anda perdida/ meus olhos andam cegos de te ver/ Não és sequer a razão do meu viver/ pois que tu és já toda a minha vida”. Trocavam colheres, garfos, olhares e sussurros; trocavam risos, e grandes juras de amor eterno, e ele tinha a imensa certeza de que tudo, tudo daria certo. Dar certo para ele seria os dois viverem juntos e felizes os anos que lhes restavam, até que a morte os separasse. Ele foi ao encontro dela, ele a admirou, ele a quis, ele a desejou, e respeitosamente ele declarou a ela sua admiração, no que foi correspondido, visto que, existia receptividade para alegria e felicidade de ambos, e dali por diante, mais e mais se foram estreitando os laços de carinho e amizade, desembocando no rio de águas calmas e cristalinas do amor. Durante os dias de trabalho, no celular, sempre pequenas mensagens deixavam-lhe mais alegre e disposto para os embates do dia: saudades; eu te amo, beijos. Antes dela, a sua vida era sem graça, sem colorido, sem alegria; os dias pareciam todos iguais, e a rotina da manhã à noite, não mudava; já sabia de cor o seu script, depois que ela apareceu não; os dias tinham mais cores, a energia da vida preenchia-lhe de fio a pavio e ela era a responsável por isso.
- Noivaremos ?
- Sim, noivaremos. Como você quer a sua aliança?
- Dourada, confortável e bem larga para que todos a vejam e ninguém tenha dúvidas....
- Assim será.
Logo no dia seguinte, ele encomendou mais que depressa as alianças, faria uma surpresa a ela, no dia do seu aniversário, ficariam noivos, lhe pediria em casamento, algumas vezes conversaram até sobre isso; cerimônia simples, discreta, sem muitas formalidades como convinha a um casal feliz e de meia-idade; loucos, simplesmente loucos para estarem a sós. Não vejo nada assim enlouquecida/ passo no mundo meu amor a ler/ no misterioso livro do teu ser/ a mesma história tantas vezes lida.
De quando em quando a harmonia da convivência era trocada por pequenos desencontros, grandes atrasos, profundos equívocos. Porém, Tudo no mundo é frágil, tudo passa. Nem só de alegrias vive o amor. Todos os dias ele saia para o trabalho, e ela buscava novas atividades, além do seu mister, não queria ficar só, tão só em casa, buscou na agenda números de telefones antigos, de pessoas que há muito não via, reativou antigas amizades, acostumara-se a passar as tardes com as amigas, durante a estadia dele no trabalho. Não poucas vezes, ele chegara do trabalho e não a encontrara; sem ela, a casa ficava vazia, mas, era um vazio muito maior, que ia além da ausência física.
- Oi, tudo bem ?
- Sim tudo bem e você ?
- Tudo bem...
- Foi onde ?
- Ah...sai com uns amigos, colegas de faculdade.....
- Eu conheço ?
- Não, você não os conhece....
- E foi bom ? você se distraiu ?
- É foi bom, o pessoal é bem bacana.
- Senti sua falta....quando você não está a casa fica vazia....
- ...mas é claro que fica, você vai trabalhar e eu saio, só moramos nós dois aqui, a casa só pode ficar vazia...
- ..não é disso que eu falo....você entende, você é uma mulher inteligente, você entende....
- Olhe, essa conversa está me enchendo o saco; vamos mudar de assunto tá ?
- Ta tudo bem...você que falar de quê ?
- De nada, de preferência ficar em silêncio; me desculpe, mas, eu não quero conversar.
Realmente ao chegar ela lhe beijou, mas, foi um beijo rápido, frio, formal, sem muito entusiasmo, parecia até que fora um beijo forçado, diferente dos beijos prolongados que trocavam num passado não muito distante. Ele foi para o quarto, ela foi ao banheiro, tomou uma boa e revigorante ducha; ele trocou o pijama, deitou-se; ela vestiu a camisola, deitou-se, balbuciou um boa noite, boa noite, ele lhe respondeu. Ela virou-se de costas, em poucos minutos dormiu. Ele, permanecia acordado. Lá fora, o vento uivava intensamente, anunciando temporais, que não tardariam.